terça-feira, 3 de setembro de 2013

Desejo, necessidade, vontade

Na tv, a famosa apresentadora inglesa Nigella Lawson ensina a fazer um de seus doces prediletos. É uma combinação de creme de leite batido, merengue, amora e cassis. Primeiro, amassa com o garfo uma porção de frutinhas gordas e frescas. Dá para ouvi-las se desmanchando e produzindo um suco escuro, denso. Depois, bate o creme de leite com a ajuda do fouet - instrumento que parece um balão vazado, feito de fios de aço ou silicone - até obter consistência e fazer ondas como em um mar de glacê real. Esfarela sobre esse creme uma farofa de suspiros esmagados com as mãos. Incorpora as frutas e o licor de cassis e decora com amoras suculentas. Pronto. Nem gosto muito de doce, mas fiquei com vontade.

Elogiada por ser uma gordinha muito bem resolvida e ainda por cima supersexy, Nigella também já foi alvo de julgamentos porque fez dieta e emagreceu. Parece que ela não se importa. Jornalista, cozinheira, linda. Gorda ou magra. Ela desafia a lógica do tempo: aparenta ter 30 anos, quando já passou dos 50. Autora de vários best-sellers das prateleiras de gastronomia, é apresentadora de programas de comida. Acaba de estrear Nigellissima, na Inglaterra, baseado em seu novo livro de mesmo nome, focado em sabores da Itália.


Seduzir pelo paladar

Costuma ser chamada de musa do food porn. A definição não é muito objetiva, mas está aí: a rigor, é seduzir pelo paladar. O jeito de manipular os ingredientes e falar sobre eles também pode caracterizar a food porn. Fotos com ou sem efeitos especiais, mas que aguçam os sentidos.

Food porn. Nigella dá uma mordida para conferir o ponto do camarão que acaba de sair do forno, mergulhado em um aromático molho de vinho e ervas. "Crunch." Ela fecha os olhos, faz um sonoro "hmmm" e larga um comentário do tipo "amo fazer algo assim tão gostoso para oferecer aos meus amigos queridos". Nada de mais, mas a patrulha da rotulagem não perdoa: é sedutora. É food porn.

De minha parte, o que tenho a dizer é que esse tipo de coisa me faz bocejar. Vejo fotos de comida porque gosto - não é nenhum obscuro objeto do desejo. Como, também, porque gosto. E muito antes de escrever sobre comida passei a ficar mais à vontade na cozinha ao acompanhar programas como os de Nigella. Eles me deixam com fome e a sensação de que também posso fazer alguma coisa. Sou claque de Jamie Oliver, outro britânico conhecido no mundo todo por seus programas e também por restaurantes e campanhas para melhorar a alimentação nas escolas. Tudo para ele parece fácil e rápido. E é, diz, desde que os ingredientes estejam sobre a bancada. O que mais admiro nos dois é o fato de serem práticos, espontâneos, pouco dogmáticos.

Muitos estímulos

Os bons programas de receita, aliás, com variações de carisma e técnica de seus condutores, agradam principalmente pelas boas ideias e porque conseguem semear truques em nossa cabeça, dicas que podem ser aplicadas em infinitas situações durante a preparação de um prato. "Só o que me irrita são as comidas muito elaboradas ou quando fazem uma fogueira no fundo do quintal para assar o peixe que acabaram de pescar. Prefiro coisas possíveis", disse-me uma amiga.

São tantas opções por aí... Há boas produções brasileiras, estrangeiras, profissionais, amadoras, complexas, deslumbradas, superficiais, afetadas.

Coma, cozinhe, fotografe, comente. Não sou eu quem diz: ligue a televisão, acesse a internet, vá até a livraria. Como nunca, estamos diante de uma profusão de estímulos gastronômicos. Mídia especializada, eventos, chefs nas capas de revistas. Blogs e mais blogs. De repente, todo mundo é crítico. A ostentação leva muita gente a publicar imagens com uma frequência obsessiva nas redes sociais, dando a impressão de que almoça e janta 18 vezes por dia. Ufa. O jeito é afastar a cansativa cortina dos exageros, selecionar e se divertir.

Veja o paradoxo: a maioria das imagens que Nigella publica em seu Facebook é simplesmente feia. Ela passa muito bem, vai a lugares superlegais, cozinha um monte de delícias. Fotografa tudo o que quer compartilhar. Os admiradores adoram. Mas as fotos... E daí? Mais um atributo de mulher normal em suas imperfeições: não se levar tão a sério. O decepcionado é quem precisa lidar com a expectativa frustrada se ela não é mais gordinha ou suas fotos não são impecáveis. E quem disse que ali, no Facebook, precisam ser? Fotografar comida é difícil à beça e Nigella sabe disso. Simples assim.

Certa vez, decidida a fazer um bolo, também fiz um ensaio tecnicamente desastroso, mas gosto de revisitar as fotos, porque me fazem lembrar aquela tarde fria quando, metida em pantufas quentinhas, aproveitei que o bebê dormia. Primeiro, separei farinha, ovos, açúcar, chocolate em pó. Fermento. Ajeitados em tigelinhas sobre a bancada, achei-os muito fotogênicos. Fotografei-os "de cima" e publiquei na minha conta do Instagram, a rede social de fotos feitas com celular.

Misturar os ingredientes na ordem e só depois bater. Peneirar a farinha para dar leveza à massa. Ficou mesmo bem fofo. Cobri-o com ganache: para cada 200 gramas de chocolate amargo picado, meia xícara de creme de leite fresco aquecido. Derreter sem ferver para não desandar, misturar sem bater para não aerar. Onde aprendi isso? Não sei. Só sei que dá certo. Resolvi decorar com confeitos coloridos de chocolate. Que lindo. Outra foto no Instagram. Mais tarde, veio o choque de realidade: como não esperei a cobertura esfriar, o corante das pastilhas derreteu e abriu no ganache sulcos desbotados de verde, amarelo, azul, vermelho, cor de rosa. Coisa de amador, expliquei na legenda. Mas até que ficou bem gostoso.

No dia seguinte, bem cedo, fiz minha habitual ronda pelo Instagram. Vi onde e o que o pessoal que eu sigo jantou na noite anterior e o que comeu de manhã. Tostex de queijo, presunto e tomate. Média e pão com manteiga. Ovos mexidos. Bacon crispando na chapa da cozinha daquele crítico de comida americano radicado em Paris. Vi fotos dos muitos filhos do Jamie Oliver, sua mulher com a taça na mão e a legenda "de pilequinho" ou "mareada" - sim, ele compartilha um pouco mais do que as receitas do dia. Ignorei os apelos do meu relógio biológico e cobicei as delícias orientais publicadas no perfil de um sujeito que tem especial talento para fotografar comida japonesa. Algumas fotos da rua, do trânsito e da chuva feitas por quem vai cedo para o trabalho. Por fim, percorri afagos benevolentes a respeito do meu acidente da véspera. Gostei.

Espremi as laranjas deliciosamente maduras para o suco matinal. Coei o café, o que perfumou a casa inteirinha. Bom demais. A água quente passando pelo filtro de papel. Fotografei. Na legenda, escrevi "coragem" - meu jeito de dizer bom dia para quem me incluiu na própria ronda matinal. Muitos nem conheço pessoalmente, mas de certa forma os encontro todos os dias por ali, não só, mas também, por causa dela. A comida.
Texto reflexivo retirado daqui: http://vidasimples.abril.com.br

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